O documento histórico de nossas sombras

Acabo de ver um trecho de uma entrevista do Padre Júlio Lancellotti em que ele diz que os moradores de rua são o “documento histórico da nossa perversidade”. Essa frase caiu como uma bomba — detonou meu cabeção.

E nessa friaca, não tem como não pensar nas pessoas que vivem nas ruas. No Sul, além do frio, as chuvas expulsam famílias inteiras de casa. E os cães que não têm lar?
E para além do Brasil… cidades inteiras tomadas, regiões devastadas, populações sofrendo genocídio.  Que história é essa que se impõe sobre o mundo? Qual o tamanho dessa perversidade que incide sobre nosso tempo?
Que sombra é essa que nos assombra?

“Tudo o que é rejeitado pelo eu, aparece no mundo como um evento.”
— C. G. Jung

Pois então — que diachos é que nós estamos rejeitando para causar tanto sofrimento?

Cada um pode (ou deveria) responder isso à sua maneira. Mas no campo coletivo, é urgente entender o que fervilha por baixo da superfície.

2018 foi um prato cheio para revelar o que pulsava sob a máscara da cordialidade brasileira. Elegemos um homem que cuspia ódio e violência sem rodeios — e ainda assim, ressoou na maioria da população. Porque atrás da imagem do carismático vira-lata verde-amarelo, havia uma ferocidade assassina. Uma que dizia:

“Eu sou favorável à tortura. (...). E o povo é favorável a isso também.”
— Jair Bolsonaro, 1999

Um Brasil marcado por uma ditadura nunca reconhecida — a enojada “ditabranda”, que de branda não teve nada — e muito antes disso, marcado por uma escravidão cuja brutalidade jamais foi reparada, e pelo sangue dos povos originários, que seguem padecendo sob a cultura do abandono e do extermínio lento. 

Quem quer reconhecer isso? Como nos associar a tamanha brutalidade — mesmo sabendo que tantas pessoas morreram, foram torturadas, tiveram sua integridade arrancada — para que muitos de nós desfrutássemos de privilégios? Mas fingir que essas dores não existem contamina os futuros possíveis. Embarga o que ainda pode florescer. Sem conscientização, a sombra toma conta. Sem reconhecimento, o trauma se repete.

Para além da culpabilização e da vitimização, qual é o nosso papel? Qual o papel da arte? 

Vamo lá… a sombra não existe sem a luz, e a luz não existe sem a escuridão. Nós, agentes do palco, sabemos bem disso. É no contraste que a cena ganha profundidade. É o conflito que faz a trama mexer, que lança o personagem à ação. No teatro da vida, é igual. Da crise, se cresce. A gente precisa usar o podre pra ambicionar o belo. Mas, pra isso, é preciso reconhecê-lo, dar contorno à sombra e encará-la de frente. O papel da arte é olhar para nossas sombras, pessoais e coletivas. Entender que elas existem e dialogar com elas. Não se trata de remoer feridas, tampouco uma superidentificação com nossas dores, trata-se de aprender com elas, colocar o que foi abafado para arejar, dar movimento ao que ficou estanque - dançar com nossa sombra, fazendo arte. 

Voltando à frase do Padre Júlio Lancellotti qual será o documento histórico que a nossa geração vai deixar? Talvez, nossa resposta esteja justamente na forma como escolhemos encarar — ou ignorar — a escuridão do nosso tempo. 



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